Por Lívia Lourenço do Carmo e Matheus Prates Cantarino
A anorexia nervosa é um transtorno
alimentar que ocorre principalmente em mulheres e tem como aspectos
psicopatológicos centrais o medo mórbido de engordar e o controle obsessivo do
peso corporal, levando ao emprego excessivo de dietas restritivas, métodos
purgativos e/ou a prática exacerbada de exercício físico.
A internet se destaca como valiosa
fonte de dados para a análise do funcionamento psíquico de pacientes
anoréxicas. Os sites, comunidades, blogs e chats pró-anorexia veiculam
estratégias para perder peso em pouco tempo, meios de acobertamento de sintomas
associados à doença e fotos de celebridades esquálidas como inspiração,
relacionando o ideal de beleza centrado na magreza à ascensão financeira, ao
sucesso profissional e à aceitação social. Neste ambiente, a anorexia é
normalmente defendida como estilo de vida e não como um transtorno.
Recentemente, Fava e Peres coletaram
dados junto a dez comunidades virtuais brasileiras pró-anorexia, as quais foram
localizadas a partir de consultas no Google. O descritor foi a expressão "pro-ana". Mais especificamente, foram selecionadas aquelas comunidades:
(a) cujas descrições foram
consideradas, após uma análise preliminar, representativas do movimento
pró-anorexia;
(b) que apresentavam conteúdo aberto
a não membros, ou seja, veiculavam material de domínio público.
A abordagem qualitativa foi adotada
de modo que os dados coletados foram submetidos a análises majoritariamente
descritivas e exploratórias buscando-se a interpretação da significação
simbólica dos mesmos a partir da interlocução com autores que têm se dedicado à
proposição de elementos psicanalíticos para a compreensão da anorexia nervosa
em suas diversas nuances. O enfoque dado foi naturalista, ou seja, não se visou
testar hipóteses, mas sim descrever o fenômeno e as circunstâncias associadas a
ele.
Os resultados do estudo
exemplificaram características do transtorno como a negação da natureza
psicopatológica do mesmo. Para Fernandes (2006), esse aspecto pode, a princípio,
demonstrar uma grave perturbação da imagem corporal comum às pacientes
anoréxicas. Tal perturbação pode atingir proporções verdadeiramente delirantes,
sendo, em ultima instância, relacionada a uma dificuldade na discriminação das
fronteiras entre o sujeito e o objeto, a qual, por sua vez, sugere clivagem
entre o ego e o corpo. Diante dessa
clivagem, os conteúdos pulsionais tendem a se perder dos conteúdos cognitivos,
o que inviabiliza um contato protetor com as angústias mais básicas. Logo, o
ego deixa de exercer sua função adaptativa e o aparelho psíquico passa a
falsear a realidade, promovendo o que se chama de hipocondria da imagem.
Observou-se também uma marcante
recusa da própria feminilidade, pois sugere que a condição de mulher, por ser
comumente associada pelas pacientes à passividade e à submissão, é vivenciada
como algo intolerável. Conforme Fucks (2003), infere-se que a adoção de dietas
extremamente restritivas pode ser entendida como tentativa de implementar um
controle onipotente sobre o próprio organismo.
Outro ponto que se destaca é a
personificação da anorexia nervosa. Nesse sentido, ainda de acordo com Fucks
(2003), vê-se que muitas das participantes das comunidades apresentam um
funcionamento psíquico que se alinha mais às modalidades paranoicas do que às
modalidades neuróticas. Para exemplificar, seguem algumas descrições dos “Dez
mandamentos da Ana”:
2.Guardar
pelo menos 5 reais da mesada/salário para os laxantes/diuréticos/inibidores;
4.
Nunca mais gastar seu dinheiro com comida, (6. rejeitar o máximo de refeições;
9.
Mentir quando necessário.
Outra evidência, de acordo com
Kelner (2004), que comprova a vertente paranoica do transtorno é a típica
desconfiança das pacientes em relação a familiares e amigos por não as apoiarem
em sua busca desenfreada pela magreza.
Diante do exposto, considerou-se
relevante alinhar a anorexia nervosa ao conceito nosográfico de vazio mental, o
qual resulta, conforme Lisondo (2004), de uma fragilidade narcisista na coesão
das identificações estruturantes, representado pela eterna busca de uma
completude motivada e potencializada pela falta de experiências reais. De
acordo com Brusset (1996), para a anoréxica, o vazio corporal é vivenciado como
a única garantia da própria integridade visto que tais experiências reais são
interpretadas como ameaças em potencial.
Somado a isso, têm-se
características da sociedade contemporânea que favorece o vazio mental ao
enaltecer o consumo, a sedução e o imediatismo. As mantenedoras e
frequentadoras das comunidades virtuais pesquisadas aparentemente procuram
preencher esse vazio mental e, ao mesmo tempo, atender às exigências de uma
cultura que estabelece a perfeição como imperativo. Logo, a anorexia nervosa
pode ser considerada uma manifestação do mal-estar da mulher na civilização
atual, a qual se encontra associada a conflitos irredutíveis ao comportamento
alimentar propriamente dito.
Referência: Fava MV, Peres RS. Do vazio mental ao vazio corporal: um olhar psicanalítico sobre as comunidades virtuais pró-anorexia. Paidéia 2011; 21(50): 353-361. [Link]
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