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terça-feira, 4 de junho de 2013

Do vazio mental ao vazio corporal: um olhar psicanalítico sobre as comunidades virtuais pró-anorexia

Por Lívia Lourenço do Carmo e Matheus Prates Cantarino

           A anorexia nervosa é um transtorno alimentar que ocorre principalmente em mulheres e tem como aspectos psicopatológicos centrais o medo mórbido de engordar e o controle obsessivo do peso corporal, levando ao emprego excessivo de dietas restritivas, métodos purgativos e/ou a prática exacerbada de exercício físico.
           A internet se destaca como valiosa fonte de dados para a análise do funcionamento psíquico de pacientes anoréxicas. Os sites, comunidades, blogs e chats pró-anorexia veiculam estratégias para perder peso em pouco tempo, meios de acobertamento de sintomas associados à doença e fotos de celebridades esquálidas como inspiração, relacionando o ideal de beleza centrado na magreza à ascensão financeira, ao sucesso profissional e à aceitação social. Neste ambiente, a anorexia é normalmente defendida como estilo de vida e não como um transtorno.
           Recentemente, Fava e Peres coletaram dados junto a dez comunidades virtuais brasileiras pró-anorexia, as quais foram localizadas a partir de consultas no Google. O descritor foi a expressão "pro-ana". Mais especificamente, foram selecionadas aquelas comunidades:
            (a) cujas descrições foram consideradas, após uma análise preliminar, representativas do movimento pró-anorexia;
             (b) que apresentavam conteúdo aberto a não membros, ou seja, veiculavam material de domínio público.
            A abordagem qualitativa foi adotada de modo que os dados coletados foram submetidos a análises majoritariamente descritivas e exploratórias buscando-se a interpretação da significação simbólica dos mesmos a partir da interlocução com autores que têm se dedicado à proposição de elementos psicanalíticos para a compreensão da anorexia nervosa em suas diversas nuances. O enfoque dado foi naturalista, ou seja, não se visou testar hipóteses, mas sim descrever o fenômeno e as circunstâncias associadas a ele.
            Os resultados do estudo exemplificaram características do transtorno como a negação da natureza psicopatológica do mesmo. Para Fernandes (2006), esse aspecto pode, a princípio, demonstrar uma grave perturbação da imagem corporal comum às pacientes anoréxicas. Tal perturbação pode atingir proporções verdadeiramente delirantes, sendo, em ultima instância, relacionada a uma dificuldade na discriminação das fronteiras entre o sujeito e o objeto, a qual, por sua vez, sugere clivagem entre o ego e o corpo.  Diante dessa clivagem, os conteúdos pulsionais tendem a se perder dos conteúdos cognitivos, o que inviabiliza um contato protetor com as angústias mais básicas. Logo, o ego deixa de exercer sua função adaptativa e o aparelho psíquico passa a falsear a realidade, promovendo o que se chama de hipocondria da imagem.
            Observou-se também uma marcante recusa da própria feminilidade, pois sugere que a condição de mulher, por ser comumente associada pelas pacientes à passividade e à submissão, é vivenciada como algo intolerável. Conforme Fucks (2003), infere-se que a adoção de dietas extremamente restritivas pode ser entendida como tentativa de implementar um controle onipotente sobre o próprio organismo.               
            Outro ponto que se destaca é a personificação da anorexia nervosa. Nesse sentido, ainda de acordo com Fucks (2003), vê-se que muitas das participantes das comunidades apresentam um funcionamento psíquico que se alinha mais às modalidades paranoicas do que às modalidades neuróticas. Para exemplificar, seguem algumas descrições dos “Dez mandamentos da Ana”:
2.Guardar pelo menos 5 reais da mesada/salário para os laxantes/diuréticos/inibidores;
4. Nunca mais gastar seu dinheiro com comida, (6. rejeitar o máximo de refeições;
9. Mentir quando necessário.
            Outra evidência, de acordo com Kelner (2004), que comprova a vertente paranoica do transtorno é a típica desconfiança das pacientes em relação a familiares e amigos por não as apoiarem em sua busca desenfreada pela magreza.
            Diante do exposto, considerou-se relevante alinhar a anorexia nervosa ao conceito nosográfico de vazio mental, o qual resulta, conforme Lisondo (2004), de uma fragilidade narcisista na coesão das identificações estruturantes, representado pela eterna busca de uma completude motivada e potencializada pela falta de experiências reais. De acordo com Brusset (1996), para a anoréxica, o vazio corporal é vivenciado como a única garantia da própria integridade visto que tais experiências reais são interpretadas como ameaças em potencial.      
            Somado a isso, têm-se características da sociedade contemporânea que favorece o vazio mental ao enaltecer o consumo, a sedução e o imediatismo. As mantenedoras e frequentadoras das comunidades virtuais pesquisadas aparentemente procuram preencher esse vazio mental e, ao mesmo tempo, atender às exigências de uma cultura que estabelece a perfeição como imperativo. Logo, a anorexia nervosa pode ser considerada uma manifestação do mal-estar da mulher na civilização atual, a qual se encontra associada a conflitos irredutíveis ao comportamento alimentar propriamente dito.

Referência: Fava MV, Peres RS. Do vazio mental ao vazio corporal: um olhar psicanalítico sobre as comunidades virtuais pró-anorexia. Paidéia 2011; 21(50): 353-361. [Link]

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