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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários

Por Izadora Lorena Ferreira Reis e Lucas Domingos Rodrigues da Cunha.

O crack é um derivado da cocaína, convertida em sua forma alcalina denominada pasta básica, de imenso poder viciante, por sua grande capacidade de induzir fissura. A fissura é definida como um forte impulso para o consumo da substância, estritamente ligada ao comportamento de uso compulsivo, à dependência e às recaídas após períodos de abstinência. Muitas vezes referida como uma necessidade imprescindível para o corpo, indispensável para a vida, comparada à fome, a fissura é definida como fator causal do fenômeno conhecido como binge: um padrão de consumo intenso, contínuo e repetitivo de crack que pode durar dias, até que se termine a disponibilidade da droga, ou até que se haja a exaustão do usuário. 

O uso abusivo e a dependência de drogas são problemas de saúde, já que suas consequências não se limitam à condição moral (rebaixamento de valores), psíquica e física do usuário; mas estende-se também a aqueles que se encontram ao seu redor, por meio da prostituição, violência, doenças sexualmente transmissíveis, que acompanham intrinsecamente a vida dos dependentes.
A fim de analisar a fissura no crack e seu reflexo no comportamento, foi feito um estudo qualitativo de 40 pessoas (dentre elas 31 usuárias e 9 ex-usuárias, da cidade de São Paulo, com mais de 18 anos, de ambos os sexos, que não apresentavam comprometimento cognitivo advindo do uso da droga).
A amostra foi submetida a um roteiro, por meio da técnica bola de beve (os primeiros entrevistados indicaram outros, que, por sua vez, indicaram outros), que abordou os tópicos: perfil sociodemográfico, histórioco de uso de crack, efeitos do crack, vivência da fissura e suas consequências, comportamento de risco associado à fissura, padrão compulsivo do consumo (binge) e agressividade relacionada à fissura.
Na análise dos resultados, observou-se que grande parte dos indivíduos possuiam baixa condição socioeconômica, com nível de escolaridade que variaram do analfabetismo ao nível superior. Todos declararam fissura como algo inevitável pelo consumo de crack e atribuíram-na papel fundamental no processo e manutenção da dependência, dificultando ou impossibilitando o abandono da droga. Três padrões de situações foram definidos como desencadeadores da fissura: (1) as pistas internas ou externas: quando se depara com algum sentimento ou algo que faça lembrar do crack (também definido com as pistas do ambiente); (2) com a retirada do crack: desejar o prazer mais uma vez ou não querer sentir o desconforto da ausência da droga; (3) na vigência do uso de crack: a fissura como um de seus efeitos e, portanto, o desejo e busca por mais e mais. Essa última condição está extremamente relacionada com o fenômeno frequente de binge durante o consumo, que culmina, geralmente, num esgotamento físico, psíquico e financeiro (e que todos declararam terem-no vivenciado).
Uma vez a fissura presente e não saciada imediatamente, seu principal efeito é o sofrimento e invasão de pensamentos obsessivos que envolvem a meneira de obtenção da substância e dinheiro para comprá-la. Dessa forma, a busca da droga não limita-se à motivação pelo prazer oferecido pelo consumo, mas também como forma de alívio do estado de mal-estar advindo da condição de abstinência.
A partir do momento que o crack assume condição vital na vida da pessoa, a urgência em consumi-lo muda seus valores, sua capacidade de discernimento e sua conduta, a partir de atividades de colocam em risco sua integridade moral e física e as de outras pessoas (nada parece tão ruim quanto não usar o crack). A partir dessas alterações morais e comportamenais, a prática de atividades ilícitas (como roubo), degradantes (como a prostituição), e comportamentos sexuais de risco (como promiscuidade e não uso de preservativo) são extensamente prevalentes em usuários na condição de fissura. No estudo em questão, a prostituição foi uma prática quase unânime entre as mulheres da amostragem e presente em alguns homens. Além disso, mudanças na personalidade através do comportamento manipulador, a partir de mentiras e dissimulações, com perda da confiança e credibilidade muitas vezes irreversíveis, estão muito associadas ao uso do crack. E, na impossibilidade de condições financeiras para o sustento do vício, endividamento (com traficantes), envolvimento com roubos e troca de pertences por pedras de crack são práticas comuns.
Dentre as estratégias comuns para o controle da fissura estão: substituir o pensamento fixo na droga por outras formas de sentir prazer, que estimulem a zona de recompensa (comer, dedicar-se à espiritualidade, buscar o prazer sexual); uso de substâncias com efeito depressor do sistema nervoso central como benzodiazepínicos, maconha, álcool; e mudança de comportamentos, baseando-se no distanciamento de locais e pessoas que lembrem ou que estão associados diretamente com o consumo da droga. Entretanto, tais mecanismos são restritos, já que as estratégias são particulares e, portanto, sua efetividade varia de acordo com a individualidade. E, mesmo para um indivíduo, o controle da fissura é extremamente lábil, já que em algumas situação é efetivo e em outras não.
Dessa forma, o crack desencadeia o binge devido à obsessão e compulsão associadas diretamente à fissura. Esse padrão de comportamento obsessivo e compulsivo suscita mudanças morais, comportamentais, reacionais que comprometem a saúde e suas relações sociais, como discutidos anteriormente. Além disso, a compreensão da causa do uso de crack, dos comportametos e condições associadas ao uso (questões sociais, ambientais e emocionais) e das formas que o usuário utiliza para enfrentar a fissura são parâmetros essenciais que devem ser investigados afim de conduzir a terapêutica do vício da melhor forma possível. A partir da do entendimento dos efeitos do crack no contexto da saúde pública, a atitude de tratar o dependente deve ser somada a estratégias que foquem a veiculação de informações à comunidade a cerca do crack e suas consequência, associada a campanhas de prevenção na comunidade na transmissão do HIV e de hepatites entre usuários de crack.

Referência:
Tharcila VC,  Zila MS, Luciana AR, Solange NA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saúde Pública 2011;45(6):1168-75.


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