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Afetividade

As funções mentais relacionadas à vida afetiva, ou afetividade, são difíceis de definir e não há um consenso na literatura sobre as mesmas.
Muitos autores costumam incluir dentro da vida afetiva os conceitos de emoção, sentimentos, paixão, humor e afeto. Esses conceitos são tão complicados que frequentemente os autores fazem definições tautológicas ou misturam os conceitos ao tentarem defini-los. Por exemplo, no Fish’s Clinical Psychopathology, afeto é definido como a responsividade emocional. Cheniaux define os sentimentos como "estado afetivo menos intenso e mais prolongado que as emoções". Já as emoções são reações afetivas agudas... Dalgalarrondo define humor como "tônus afetivo, estado emocional basal, fundamental e difuso".

É interessante perceber que Nobre de Melo, há algumas décadas, criticava que: “O legado da velha Psicologia pretendia reduzir toda a riqueza e variedade da vida afetiva às dimensões do agradável e desagradável.” No entanto, autores contemporâneos insistem na mesma questão: “Afetos são estados psíquicos subjetivos que se caracterizam pela propriedade de serem agradáveis ou desagradáveis. É uma consequência das ações do indivíduo que visam à satisfação de suas necessidades” (Cheniaux).

Com relação ao humor, vemos muitos autores definindo-o como: “Somatório dos sentimentos presentes na consciência em um dado momento.” (Bumke). Nobre de Melo contesta dizendo que  “Isso é tão difícil de conceber quanto de aceitar...”. 

No campo das Neurociências, os conceitos de emoção e sentimentos são relativamente precisos. Vejamos o que diz Antonio Damásio sobre emoções e sentimentos em entrevista à Mind, da Scientific American:

MIND: You differentiate between feelings and emotions. How so?
DAMASIO: In everyday language we often use the terms interchangeably. This shows how closely connected emotions are with feelings. But for neuroscience, emotions are more or less the complex reactions the body has to certain stimuli. When we are afraid of something, our hearts begin to race, our mouths become dry, our skin turns pale and our muscles contract. This emotional reaction occurs automatically and unconsciously. Feelings occur after we become aware in our brain of such physical changes; only then do we experience the feeling of fear.

MIND: So, then, feelings are formed by emotions?
DAMASIO: Yes. The brain is constantly receiving signals from the body, registering what is going on inside of us. It then processes the signals in neural maps, which it then compiles in the so-called somatosensory centers. Feelings occur when the maps are read and it becomes apparent that emotional changes have been recorded--as snapshots of our physical state, so to speak.

MIND: According to your definition, all feelings have their origin in the physical. Is that really the case?
DAMASIO: Interestingly enough, not all feelings result from the body's reaction to external stimuli. Sometimes changes are purely simulated in the brain maps. For example, when we feel sympathy for a sick person, we re-create that person's pain to a certain degree internally. Also, the mapping of our physical state is never completely exact. Extreme stress or extreme fear and even physical pain can be dismissed; the brain ignores the physical signals that are transmitting the pain stimulus.

Como visto, a querela entre Cannon-Bard e James-Lange está resolvida para Damasio, cuja teoria se aproxima de James-Lange.

A querela Cannon-Bard vs. Lames-Lange.

Segundo Damasio, em O Mistério da Consciência, “As emoções fornecem aos organismos, automaticamente, comportamentos voltados para a sobrevivência. Em organismos equipados para sentir emoções, ou seja, para ter sentimentos, as emoções também têm um impacto sobre a mente, no momento em que ocorrem, no aqui e agora. Mas em organismos equipados com consciência, ou seja, capazes de saber que têm sentimentos, existe ainda outro nível de regulação.” E ele ainda complementa: “A consciência permite que os sentimentos sejam conhecidos e, assim, promove internamente o impacto da emoção, permite que ela, por intermédio do sentimento, permeie o processo de pensamento. Por fim, a consciência torna possível que qualquer objeto seja conhecido — o “objeto” emoção e qualquer outro objeto — e, com isso, aumenta a capacidade do organismo para reagir de maneira adaptativa, atento às necessidades do organismo em questão. A emoção está vinculada à sobrevivência de um organismo, e o mesmo se aplica à consciência.”

As divergências são maiores em relação aos conceitos de humor e afeto. Quanto ao conceito de paixão, creio que nem vale a pena mencioná-lo, em virtude de sua fragilidade conceitual e inutilidade semiológica. Deixemo-la aos poetas...

Apesar dessas dificuldades conceituais, segue uma tentativa de defini-los, sem o menor intuito de uniformizar esses termos. Infelizmente, estamos longe do dia em que se estabelecerá uma "Nomina Psychopathologica".



Agora, observe a situação abaixo e imagine a aplicação desses conceitos para descrever as vivências afetivas do soldado que desarma uma bomba.



Poderíamos descrevê-las da seguinte maneira:



Os conceitos acima têm sido aplicado com certa regularidade na prática clínica. Curiosamente, os conceitos de humor e afeto são aqueles a que têm sido atribuído maior valor semiológico, apesar das enormes dificuldades e controvérsias conceituais. Por exemplo, constantemente falamos do humor deprimido e do humor exaltado no caso da depressão maior e da mania, respectivamente. Também usamos corriqueiramente termos como "embotamento afetivo" para descrever os déficits na capacidade de exprimir o estado afetivo em pessoas com esquizofrenia. Apesar disso, a base neurobiológica dessas funções ainda é pouco conhecida, muito em virtude dos próprios problemas conceituais.

Pankseep (2010), numa tentativa de estabelecer alguma base neurobiológica a esses conceitos, define níveis diferenciados de controle no processamento emocional-afetivo cerebral. Em um nível primordial-básico (sub-neocortical), as redes emocionais gerariam padrões de ação característicos do comportamento institivo. Essas redes são inicialmente ativadas por um conjunto limitado de estímulos incondicionados (ou seja, reflexo inato). Os arousals resultantes duram o mesmo tempo das circunstâncias precipitantes. Os arousals emocionais transmitem vários estímulos sensoriais ao cérebro (observem que aqui o conceito de emoções e sentimentos ainda se assemelham àqueles trabalhados por Damasio), bem como controlam a aprendizagem e auxiliam programar atividades cognitivas superiores. Com a maturação, os mecanismos cerebrais superiores passam a regular arousals emocionais.

Em um nível secundário (aprendizagem via núcleos da base), os estados afetivos surgem a partir da aprendizagem emocional simples, tais como condicionamento clássico e operante, que têm sido bem estudados em modelos animais, especialmente o condicionamento do medo. Em um nível terciário, surgem ruminações intrapsíquicas e pensamentos sobre a própria sorte na vida. Tais cognições afetivas de ordem superior promovem as “intenções-para-ação” e são elaboradas pelas regiões médio-frontal, que só podem ser bem estudadas em humanos. Nas palavras de Panksepp:

"Humans go back to the Pleistocene [about 2.5 million years ago], but the emotional part of the brain goes back much further, all the way to the time when ancestral mammals evolved away from reptiles. Primary processes, based in deep subcortical regions, manifest evolutionary memories that are the basic emotional operating systems of the brain. Secondary processes, based on a series of way stations known as basal ganglia, are enriched with the mechanisms for learning—for linking external perceptions with associated feelings. Then on top, the tertiary level is programmed by life experiences through the neocortex, engendering our higher cognitive processes such as thinking, ruminating, and planning. Our capacity to think is fueled by our storehouses of memory and knowledge acquired by living in complex physical and social worlds. But the ancient feeling states help forge our memories in the first place. New memories could not emerge without the underlying states that allow animals to experience the intrinsic values of life."

A rede primordial pode ser despertada através da estimulação elétrica de regiões subcorticais do cérebro muito específicas. Estimulação elétrica do cérebro pode servir como "recompensas" quando emoções positivas são eliciadas, p. ex. SEEKING, LUST, CARE, PLAY. Quando emoções negativas são despertadas (RAGE, FEAR, GRIEF), animais escapam da estimulação. Essas alterações comportamentais e afetivas são raramente, ou nunca, evocadas a partir de regiões pré-frontal neocorticais superiores, sugerindo que as áreas mais elevadas do cérebro podem não ter o circuito adequado para gerar essas experiências afetivas. Porém, o neocórtex pode claramente regular (por exemplo, inibir) arousals emocionais. O efeito positivo sobre o humor do tratamento com estimulação magnética transcraniana repetitiva aplicada no córtex pré-frontal esquerdo tem, possivelmente, essa influência sobre a capacidade do neocórtex inibir determinadas vivências afetivas.

Em entrevista à Discovery, Panksepp reitera essas questões:

DISCOVERY: Researchers have recently tried to treat depression by stimulating the brain with electrodes. The psychiatrist Helen Mayberg, for instance, has found a spot that, when stimulated, seems to relieve depression.
PANKSEPP: What Helen Mayberg has been doing is at the tertiary level [the neocortex, or center of thought]. We are evaluating similar manipulations at the primary level [ancient structures]. This should be more powerful. At the tertiary level, all you can do is dampen the psychological pain coming from deep down. We are going to that deep place, where we’ll try to do something more direct by amplifying eagerness to live.

DISCOVERY: You are going to address mood disorders by going straight to the source?
PANKSEPP: We plan to go smack into it. We think that depression is an underactive seeking urge that has been made underactive by too much psychological pain. We know that all the neural systems are still there, so our goal is to invigorate the primitive seeking urge to provide a positive affect to fight the negative pain. That’s what we’re gonna try.

Em resumo, temos razoável conhecimento sobre a base neurobiológica da geração de emoções e sentimentos, mas o campo ainda é bastante obscuro ao nos referirmos a estados bem mais complexos, como o estado de humor.


Leitura adicional:
Baldaçara et al. Humor e afeto: como defini-los? Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa São Paulo 2007; 52(3):108-13. [Link]

Panksepp J. Affective neuroscience of the emotional Brain-Mind: evolutionary perspectives and implications for understanding depression. Dialogues Clin Neurosci. 2010 December; 12(4): 533–545. [Link]



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